12/10/2024

Ah, se houvesse no mundo um exército de infantes



As crianças não são livros para colorir. Você não pode preenchê-las com as suas cores favoritas.
Khaled Hosseini

NOTA DO AUTOR: escrevi esta prosa poética por ocasião do 1º Prêmio Jundiaí de Literatura. Não pude concorrer porque a categoria Prata da Casa exigia um mínimo de dois anos de residência no município.

Ah, se houvesse no mundo um exército de infantes, não destes parrudos beligerantes, mas daqueles pequeninos seres brincantes. Ai, se tivéssemos a chance!

Ah, se pudéssemos trocar os órgãos paraestatais, seus membros pedantes e senis, pelas mentes joviais dos grêmios estudantis. Ai, como eu seria feliz!

Ah, se nossos pequenos não fossem fantoches ingênuos de adultos proselitistas; se suas bochechas não fossem alvos dos afagos obscenos dos populistas. Ai, seria de encher as vistas!

Ah, se não existissem limites territoriais, tampouco círculos sociais. Haveria crianças por todas as bandas e em todas elas conexões reais. Ai, isso não seria demais?

Ah, se num universo paralelo surgisse um resgate, um elo, onde ao menos se vislumbrasse, assim face a face, nossa criança interior, nosso eu anterior. Ai, eu não iria me contrapor!

Ah, se os nossos rebentos pudessem brincar ao relento, sem trauma ou covardia; se em cada momento não houvesse negligência ou revelia. Ai, quimera-utopia!

Ah, se os pequenos mais virulentos não tivessem seus intentos confundidos com rebeldia; se fôssemos mais atentos e víssemos em seus movimentos atos de ousadia. Ai, que alegria seria!

Ah, se a fome fosse só o nome dado ao intervalo entre cada refeição; se a obesidade infantil fosse tão combatida quanto a inanição. Ai, se só faltasse pão na casa do João!

Ah, se toda casa se construísse com muito esmero; se cada lar estivesse repleto de paternidade responsável e amor materno. Ai, se todo conselho tutelar fosse austero!

Ah, se qualquer fila indiana fosse maior que a fila da adoção; se somente as brinquedotecas dessem espaço à superlotação. Ai, se todo suspiro fosse de emoção!

Ah, se os nossos arteiros contemplassem telas de arte na mesma frequência que fitam telas interativas; se os tutores fizessem suas partes e respeitassem as classificações indicativas. Ai, se nenhuma boa prática dependesse de instruções normativas!

Ah, se houvesse uma cultura de produtos infantis nas grades da televisão; se a leitura fosse tão estimulada quanto se estimula a competição. Ai, assim seria o bê-á-bá da boa comunicação!

Ah, se todo dia fosse dia de ludoterapia; se a vaidade só coubesse no caderno de caligrafia. Ai, se todo incapaz fosse a pauta em primazia!

Ah, se toda carência fosse de cafuné ou aconchego; se todo respeito não germinasse do medo. Ai, se fosse assim desde cedo!

Ah, se toda confusão em roda viesse da formação de uma ciranda; se um ataque de cócegas fosse a agressão menos branda. Ai, se só houvesse essa demanda!

Ah, se todo perigo mundano fosse um fenômeno químico ou um acidente geográfico; se cada ser humano não se tornasse seu lobo autofágico. Ai, como seria mágico!

Ah, se a sexualidade não fosse estimulada antes da puberdade; se pudéssemos castrar todo tipo de perversidade. Ai, se todo tratamento se desse de acordo com a idade!

Ah, se a recessão fosse apenas um recesso escolar prolongado; se a progressão continuada não fosse um faz de conta mal contado. Ai, imagine o resultado!

Ah, se todo trabalho infantil fosse feito de cartolina e giz de cera; se somássemos a matemática básica à educação financeira. Ai, nenhum menino ou menina seria arrimo da família brasileira!

Ah, se o exemplo guiasse e a palavra não passasse de mera recordação; se cada ‘ah’ que eu falasse não fosse um lamento em forma de interjeição. Ai, se não nos faltasse dedicação!

Ah, como seria se, por alguns instantes, virássemos pupilos dos nossos infantes; se deixássemos nossos ares arrogantes e volvêssemos como aspirantes. Ai, nada seria como antes!

Ah, se toda infância, desde a primeira, fosse defendida como um infante defende a sua flâmula na última trincheira; se cada investida em educação de base não fosse apenas promessa eleitoreira. Ai, seria uma ofensiva lisonjeira!

Ah, se todo sol fosse o de Aquarela e toda tarde fosse fagueira; se todo roubo fosse à bandeira e tudo que fosse bom fosse brincadeira. Ai, seria recreio a vida inteira!

ILUSTRAÇÃO USADA NO TOPO
Ah, se houvesse no mundo um exército de infantes (2024), de Homero Esteves.

P.S. 1 - Homero é o criador da Traceja e publica seus trabalhos e processos criativos no YouTube e no TikTok. Além disso, também é o autor do logotipo deste blog!

Autista de alto desempenho desespero, estrategista esforçado e um formoso fracassão, viveu pequenas ilusões em vez de grandes sonhos e nunca se sentiu gabaritado para falar sobre nada, mas fala por ser idealista teimoso e comunicativo verborrágico.

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